Pelo menos desde a segunda metade do século XVIII algumas residências do centro da Vila Real do Bom Jesus do Cuiabá dispunham de acesso privado a mananciais de água potável. Inventários pós-morte, relatórios policiais, processos judiciais e alguma documentação iconográfica demonstram claramente a existência de muitos poços nos quintais das “casas de morada” ou das “casas de residência”. Era o caso, por exemplo, da casa de Joaquim Lopes Poupino: (...) uma propriedade de casas de sobrado sitas na Rua de Baixo, atual Galdino Pimentel, no centro histórico de Cuiabá, com quatro janelas por cima com suas sacadas duas e duas de rótulas e mais uma sem rótula na frente e casas por baixo com janelas e portas, seu quintal, cozinha e poço.
Ou a casa de Manoel Rodovalho e Silva do início do século XIX, com “cozinha e quintal de vários arvoredos de espinhos e outras diversas qualidades (...) com seu poço”. Ou, ainda, a casa de Joaquim Xavier da Costa Vale, que na “Rua Direita de Baixo” , atual Galdino Pimentel, tinha casa com “cozinha e poço e seu quintal”. Ou a do Alferes Roque da Costa Faria, “no pátio da Matriz”, atual Praça da República, com seu “meio poço”. Ou, já em 1822, Salvador Gonçalves da Cruz, com casa “no largo do Palácio com os fundos para a Rua do Meio”, “com seu poço”.
Embora não seja ainda possível quantificar o número de propriedades residenciais da Vila Real providas com poços, os indícios encontrados até agora levam a crer que no centro da vila esse tipo de acesso particular à água potável era mais frequente. Por um lado, porque vários dos moradores do centro da vila tinham maiores recursos para pagar a feitura desses poços; por outro lado, porque certamente os poços valorizavam as “moradas de casas” e seus proprietários.
Mas não devem ser desconsideradas as características de geologia e relevo do centro da vila e da cidade. A margem direita do córrego Prainha configura, a partir do córrego, persistente aclive, o que certamente contribuiu para deslocamentos e armazenamentos de águas em seu subsolo.
Na periferia imediata ao centro, ocorriam também perfurações de poços residenciais médios e grandes. Como a casa de Luiz Manoel Rodrigues, na Rua da Emancipação, antes denominada Rua da Prainha, que tinha no terreiro poço d’água, segundo inventário de 1879. Ou a chácara de Alexandre Ferreira Mendes, com “poço de água potável que fornece diariamente as pessoas que se tem ressentido da falta deste elemento 200 potes, tendo dia de 300 a 600, denominado de Manancial do Poço S. João”.
Resta ainda todo um estudo a ser feito quanto aos poços da vila e da cidade de Cuiabá, mesmo que limitado ao centro. Ainda estão por serem identificadas as formas de localização de mananciais de água potável no espaço urbano; conhecidas e documentadas as técnicas construtivas desses poços; quais os profissionais mais qualificados na produção desse tipo de equipamento urbano, a identificação da pureza das águas; e como os sistemas construtivos transformaram-se, no decorrer de quase dois séculos.
Sobre isso, as práticas de mineração subterrânea, ainda pouco estudadas na historiografia existente sobre a capitania e a Província de Mato Grosso, podem ter favorecido trânsitos, na utilização das técnicas adotadas para a feitura de poços de mineração, na feitura de poços de água potável.
Os poços estavam sempre localizados próximos às residências ou no centro delas, como presenciamos hoje em várias casas localizadas no centro histórico da cidade de Cuiabá, conforme, Joacira Bulhões Perrupato “(...) construções em taipa e adobe, sobre alicerces em pedra canga. O seu imenso quintal abrangia uma área de pomar de frondosas árvores frutíferas, possuindo ainda um belo poço de pedra canga”.
Para Daniel Roche, o poço proporcionava uma reunião da família, pois a sociabilidade do poço era forte, as mulheres se encontravam ali pelo menos duas vezes ao dia, era a primeira e última tarefa do trabalho diário.
No Araés, onde havia três poços de água potável, onde só de um se bebia e outros dois ficavam para as lavagens de roupas, nas imediações da Escola Presidente Médice, hoje Avenida Mato Grosso, entre as Avenidas Marechal Deodoro e Rubens de Mendonça, também se formavam um amontoado de lavadeiras e carregadores, carregadoras de água. Por lá faziam companhia para Nhá Germana, Siá Maria e D. Ana Luíza, as lavadeiras Marcianinha, Elzira, Clarice, mulher de Manoel Romão e Paulina de Camargo, todas já falecidas.
Os poços das residências de famílias cuiabanas mais abastadas tornaram-se inclusive “lugares de memórias”, referidos por escritores locais. Firmo Rodrigues, por exemplo, relembra sua infância nos quintais verdes da cidade: “no meio do quintal havia um poço sem guarnição, à beira do qual, não sei como eu não caí”.
As águas urbanas, apropriadas na esfera do privado, jorrantes ou armazenadas no interior dos “chãos” e das “moradas de casas”, com alguma freqüência eram também utilizadas para umedecer pequenos cultivos de hortaliças que se vendia na vila. Por vezes alguns moradores faziam desvios ilegais das águas de seus vizinhos, como a preta forra Ivana Cabangu, para regar sua horta.
Normalmente, os poços também ficavam nos quintais das casas onde as portas davam para amplas varandas, com acesso aos jardins e aos pomares, como, por exemplo, o poço de água doce da família Vinagre, inclusive utilizado nas festas de São João: “(...) davam-se ao luxo de lavar o santo em poço privativo, a Cacimba do Soldado, nativa no terreno da chácara de tia Amélia”.
A produção de água por poços ainda é uma realidade na cidade de Cuiabá.
(*) NEILA BARRETO é jornalista, mestre em História e membro da AML e atual presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso.
Os artigos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem necessariamente a opinião do site de notícias www.hnt.com.br
Clique aqui e faça parte no nosso grupo para receber as últimas do HiperNoticias.
Clique aqui e faça parte do nosso grupo no Telegram.
Siga-nos no TWITTER ; INSTAGRAM e FACEBOOK e acompanhe as notícias em primeira mão.