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Sexta-feira, 14 de Junho de 2019, 07h:45

De que lado você está?

EDUARDO MAHON

Divulgação

Eduardo Mahon

Acredito que as redes sociais não são o lugar mais adequado para o juridiquês que, cá entre nós, é um porre. Ninguém merece uma escrita criptografada pontificando erudição técnica fora dos tribunais, dos consultórios, dos laboratórios, das salas de aula. De qualquer forma, vou tentar explicar algumas questões jurídicas que envolvem prova lícita, ilícita, suspeição, impedimento e as repercussões para o processo penal. Tento escrever de forma acessível, descontando pequenas nuances que dizem respeito a especialistas. Portanto, peço antecipadamente desculpas, mas é preciso colocar a bola no chão, pisar em cima e olhar o campo, antes de continuar esse fla x flu que virou o achismo eletrônico da grande vitrine de patologias que encontramos nas redes sociais. Antes de tudo, cabe uma pergunta: processo penal para quê? Qual a sua utilidades? Essa é uma questão que vai nortear esse texto.

Inicialmente, o processo (qualquer processo) era visto como um mero realizador do direito penal. Noutras palavras, o adjetivo, o apêndice, o acessório de um direito material, substantivo, qual seja, o próprio direito penal que define delitos e prescreve penalidades. Estamos falando dos gregos e dos romanos, evidentemente. Essa visão clássica do processo mudou muito. Com o tempo, o direito processual ganhou foros de ciência e, portanto, deu o grito de independência com Cesare Beccaria e muitos outros iluministas, podendo ser citado até mesmo Tocqueville que, anos depois, integrou a disciplina com conceitos complementares bastante democráticos. Bem, isso são questões mais aprofundadas. Importa saber, por enquanto, que o processo contemporâneo é uma disciplina autônoma definida como um encadeamento de atos processuais que visam regular e limitar a atividade estatal no direito punitivo, oportunizando ao acusado a previsão sobre o rito, sobre as fases desse caminhar, tudo de antemão conhecido e explicitamente previsto em lei. São as regras do jogo, em resumo. 

Podemos dizer, portanto, que o processo penal é um conjunto de prescrições legais cuja previsibilidade limita a atuação do poder estatal. Se vocês prestarem atenção, inverteu-se o conceito inicial. Se antes, o processo servia ao Estado para punir, agora serve ao acusado para se defender. Esse giro começa em 1215 quando a nobreza impõe um cabresto legal a João Sem Terra e se aprofunda do século XVIII em diante. O conjunto de regras garante a resistência do acusado e qualquer infração do poder público é sancionada com nulidades, sejam elas relativas ou absolutas. O que são as nulidades? São sanções processuais que inviabilizam a prova ou o ato processual, cuja penalidade é a desconsideração total ou parcial. Como funciona o sistema de nulidades? Em geral, há nulidades que devem ser arguidas no primeiro instante em que as partes tomarem conhecimento, mas se forem nulidades absolutas (e interesse público) podem ser aventadas até depois do trânsito em julgado do processo. Isso porque o processo é uma garantia, não um torniquete.

Dito isso, a pergunta que não quer calar: a prova ilícita pode ser usada em favor do réu? Sim. Sim e ponto final. Por questão de lógica, de coerência, de sistema. Se as nulidades são sanções processuais que salvaguardam o direito à defesa, não se aplicar quando forem benéficas ao acusado. Não, não estou advogando com casuísmo, não confundam as coisas! As provas ilícitas não serão validadas nunca, mas poderão ser usadas em favor do acusado sempre. Entenderam? Não servem para punir ninguém, seja cível, penal ou administrativamente, mas são perfeitamente admissíveis para salvar o pescoço de algum acusado. 

Imaginemos uma situação-limite: o João de Tal foi condenado por homicídio, com a sentença não sujeita a recurso, mas descobre uma armação de uma quadrilha que é grampeada ilicitamente. Poderá usar as gravações em seu favor? Por certo que sim! Ninguém pode amargar uma prisão injustamente, nem mesmo aquele que já está condenado. Não me venham com teorias que contemporizem com a injustiça, por favor. De outro lado, o aparelho estatal poderá usar essa mesma arapongagem para processar alguém envolvido na trama? Por certo que não! A prova é imprestável para qualquer processo que vise a punição. É bem lógico o sistema, se pararmos para compreendê-lo. Isso não significa dizer – vai aqui uma observação importante – que o responsável pelo grampo não será punido. O araponga, seja ele quem for e esteja ele a mando de quem estiver, vai ser processado e condenado por interceptação ilegal, mas isso são outros quinhentos.

Respondida a primeira questão, vamos à segunda que palpita em muitos corações: é possível usar uma gravação ilegal para comprovar a eventual suspeição de um magistrado de forma retroativa? Perguntando mais tecnicamente: pode-se sujeitar uma decisão judicial já consolidada ao crivo das nulidades por fatos supervenientemente descobertos? Sim, claro. Ninguém é obrigado a saber se o juiz é ou não suspeito, sobretudo quando se trate de matéria penal. Quando houver alguma hipótese de suspeição, deverá acusá-la. Se, porém, a causa se descortinar muito mais tarde, mesmo depois que o juiz tenha sentenciado o caso, poderá o acusado levantar a exceção judicial da mesma forma, talvez por uma via diferente. Em geral, utiliza-se o habeas corpus, mas pode ser manejado também o mandado de segurança ou até a revisão criminal, dependendo se a sentença se tornou ou não imutável. E no caso de Moro? E no caso de Lula? – babam os internautas por uma resposta... 

Na maioria dos diálogos que foram divulgados até agora, não há nada além da falta de escrúpulos de Sérgio Moro e dos procuradores ao se aproximarem além do que prevê a lei processual. As dúvidas da acusação são tão naturais quanto as dúvidas da defesa, o comunicado de que há uma testemunha que se negou a depor não se configura qualquer ilícito passível de acionar o sistema de nulidades. Esse compadrio, ainda que péssimo para a credibilidade do sistema, não é passível de sanção. Porém, se forem verdadeiras essas conversas de bastidores, o problema está em dois momentos: no primeiro, o juiz questiona os procuradores se já não estaria na hora de uma nova operação e, no segundo, recomenda que a acusação limite-se a um número razoável de acusados e não amplie demais o espectro acusatório. Trata-se de estratégia, outro nome não há. Estratégia processual, de abordagem, de organização e de encaminhamento, o que se configura gravíssima e irremediável nulidade processual que bem pode ser arguida em qualquer momento, desde que haja prova robusta dos fatos e não mero fuxico de sítio virtual. Isso não significa, como já expus, que qualquer das autoridades envolvidas será punida, já que a eventual prova contra elas é ilícita e, portanto, imprestável.

Devo fazer um último comentário. Nesse clima de fla x flu que virou o Brasil, onde as visões políticas se converteram num misto de religião e torcida organizada, as pessoas esquecem de algo muito importante: ficar do lado correto, medir escalas, proporções. Tratam um lado com uma colher de chá e o outro, com a de sopa. Anulado ou não o processo por questões formais, isso não significa que a coleção de cafajestes que assaltou o nosso país seja menos culpada; não significa que não houve o maior roubo institucional da nossa história republicana; não significa que a quadrilha que se organizou em satélites partidários seja menos culpada, menos horrível, menos torpe. Continuam sendo cafajestes que, lamentavelmente, são defendidos por torcedores fanáticos, gente com a visão completamente deturpada por um messianismo entranhado numa plataforma política que apresentou muitos resultados excelentes, mas custou ao país bilhões desviados e, agora, a maior crise financeira desde o encilhamento da primeira república. 

Não vamos misturar alhos com bugalhos. A safadeza de uns (peculato, corrupção ativa e passiva, lavagem de dinheiro) não tem a mesma natureza e nem a mesma proporção de uma mera suspeição judicial por mais antiética que ela seja. Por que? Facílimo responder: porque a corrupção da quadrilha partidária brasileira nos deixou mais pobres, desviou recursos públicos bilionários que poderiam e deveriam estar aplicados no mercado, afetou a economia nacional e jogou no desemprego milhões de pessoas. Trata-se de um descalabro. A suspeição de um juiz e de acusadores gera a nulidade processual e, no máximo, o desperdício de dinheiro com aquele conjunto processual. Não se compara a corrupção profissionalizada que tunga recursos públicos em proporções hiperbólicas com as patifaria processuais de autoridades que acreditam na máxima maquiavélica, onde os fins justificariam os meios. Não justificavam nem para a manutenção da república florentina e continuam não se prestando para salvar processos, nem mesmo processos contra gente vil que se usou do cargo máximo da república brasileira para assaltar o povo com os cupinchas de terno e gravata que nos assombram diariamente. 

Resumo da ópera: por mais que os corruptos possam se aproveitar do sistema processual, por mais que nos frustremos ao observar sem sofismas ou dubiedades as regras do jogo, a Constituição é o que nos salva do arbítrio. Não vou ser dramático como Hobbes dizendo que, sem lei penal, viveríamos na barbárie porque me parece muito superado esse papo de estado natural e outros romantismos modernos. No entanto, é preciso observar a lei por mais vil que seja o acusado, por mais escroque que se apresente, por mais hipócrita e canalha que se desnude. Aliás, é preciso observar a lei sobretudo para o vil, para quem consideramos vil, escroque e canalha. É isso mesmo que nos mantem a salvo da irracionalidade, do barbarismo e do justiçamento de pequenos napoleões togados. No entanto, como cidadãos, podemos escolher o lado em que ficamos. Independentemente do conjunto de regras processuais que deve garantir ao máximo um julgamento equilibrado, precisamos tomar uma posição de natureza política e escolher o menor pior. Num cenário horrivelmente maniqueísta, prefiro ficar ao lado do antiético que deve ser admoestado severamente e perder cargos e regalias, mas não do corrupto que deve puxar cadeia pura e simplesmente. E você, de que lado está?

(*) EDUARDO MAHON é advogado, escritor e membro da Academia Mato-grossense de Letras e escreve para HiperNotícias às sextas. E-mail: [email protected]