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Domingo, 14 de Agosto de 2016, 08h:57

Considerado "corredor da morte" das cadeias, CRC dá exemplo para ressocialização de presos em MT

MAX AGUIAR

Um lugar que na década de 90 tinha corredor da morte, valas para jogar presos que eram espancados e até cela da tortura, hoje o Centro de Ressocialização de Cuiabá (CRC), antigo presídio do Carumbé, escreve uma nova história diante do processo de ressocialização. 

 

Alan Cosme/HiperNoticias

carubé/CRC

Atualmente Carumbé oferece vários cursos dentro da carceragem

Acompanhado apenas do diretor da cadeia e da assessoria de imprensa da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos (Sejudh), a reportagem do HiperNotícias passou algumas horas na penitenciária e descobriu que o local, além de ser considerado pelos próprios presos o “céu das cadeias”, é um lugar onde o reeducando tem espaço para estudar, orar, trabalhar e acompanhamento psicológico.

  

Atualmente a rotina dos que estão reclusos no antigo Carumbé conta com atividade profissional, cursos de capacitação e aulas do ensino regular. Estas ações, simplesmente, estão mudando a realidade da mais antiga e uma das maiores prisões de Mato Grosso. 

No CRC, dos atuais 750 presos, 450 deles têm ocupação definida e pelo menos 100 estão matriculados na escola de ensino regular (fundamental e médio). Dentro da cadeia, também tem uma biblioteca, comandada por um professor, que foi condenado por pedofilia. Ele ajuda na alfabetização de presos recém-ingressos no sistema que não sabem escrever nem ler.

 

Além disso, nos fundos do presídio as alas estão lotadas de presos que buscam cursos profissionalizantes de marceneiros, serralheiros, pintor, costureiros, padeiros e confeiteiros. 

No CRC, a realidade intramuros difere bastante do antigo presídio fundado na década de 70, que em abril de 1989 registrou a maior e mais sangrenta rebelião do sistema prisional, com 10 mortos, sendo oito detentos e dois policiais, além de 32 feridos.  

 

Igreja

 

Alan Cosme/HiperNoticias

carubé/CRC

 

Quando chegamos na carceragem fomos recebidos pelo diretor do presídio, Wikler Freitas Teles. Logo, ele assegura à reportagem que poderia andar tranquilamente dentro do presídio, pois todos iriam receber a reportagem com muita alegria.

 

O diretor contou, inicialmente, que o local possui igrejas e que todos estavam lotadas. “Aqui dentro temos três igrejas, lideradas por pastores presos que, tiveram um passado super pesado, e hoje estão 100% ressocializados. Eles pregam o dia todo para aqueles que que pretendem mudar de vida e escolheram a ala evangélica para conviver aqui dentro”, disse Winkler.

 

A poucos passos da diretoria, está a ala evangélica. De longe, era possível ouvir o som da pregação comandada por Aclídes Marcelo Gomes, “conhecido por Menino Mau”, condenado a 115 anos de prisão por 11 homicídios e que há 15 anos vive dentro do presídio.

 

Aclídes pregava para pelo menos 40 reeducandos, que em tom de fervor clamava o perdão de Deus pelos erros cometidos. “Aqui eles oram de manhã, tarde e noite. Tem som, microfone e muita paz nesse lugar. Todos respeitam um ao outro e, com isso, a convivência dentro do presídio passa a ser uma coisa menos horrorosa do que a maioria da sociedade pensa que é”, frisa o diretor do CRC.

 

Alan Cosme/HiperNoticias

carubé/CRC

Siqueira, que um dia já foi temido dentro da cadeia e nas ruas de Cuiabá, hoje é pastor em uma das igrejas da unidade

O que chama atenção da reportagem é a forma em que o diretor trata os reeducandos e como eles agem, pedindo reuniões ou visitas ao diretor. “Eu ando aqui meio período, chego na sala com mais de 100 bilhetes. Eles pedem de tudo pra mim. Resolvo alguns problemas, mas a maioria das agilidades é preciso passar pela Vara de Execuções Penais”, comentou.

 

Na segunda igreja, dentro da ala evangélica, o local ainda mais lotado que a primeira a ser visitada. “Eles necessitam de ver pessoas diferentes. E sempre que alguém entra aqui com uma palavra amiga, com um ar de amigo e não de opressor, eles aplaudem e ficam cheio de esperança. É necessário dar uma chance a mais para esses que agora buscam uma vida diferente. Por isso, sempre que alguém visita a ala evangélica é recebido com palmas e muitas orações”, detalha o diretor.

 

Alan Cosme/HiperNoticias

carubé/CRC

 

Entre uma caminhada e outra, a reportagem encontra um reeducando que quis se identificar apenas como Siqueira. Um detento que por muito tempo foi considerado de alta periculosidade. Ele recebeu a equipe e fez questão de mostrar a igreja que comanda dentro do Centro.

 

Lá, por volta das 10h30, o culto é de adoração a Deus e muita cantoria. Interrompemos por alguns minutos. Ali estavam detentos condenados por homicídio, roubo, latrocínio e tráfico de drogas. “Minha vida passada o povo pode julgar, mas aqui na terra já pedi perdão pra Deus e hoje estou pronto para retornar à sociedade. Passo minha história para muitos e mostro que tem como fazer um novo fim de vida. Basta querer, basta querer”, repete o hoje pastor.

 

Além das igrejas, o CRC também conta com um espaço preparado para o batismo dos detentos que quiserem se converter.

 

Estudos

 

Winkler reconhece que a superlotação é problema, mas diz que nenhum reeducando fica sem colchão ou lugar para dormir. No cargo desde 2013, porém com experiência de direção em outros presídios, de Mato Grosso e Goiás, o diretor explica que a meta no CRC, traçada pela Sejudh, é manter 100% dos presos ocupados com atividades profissionais e estudos. 

 

Alan Cosme/HiperNoticias

carubé/CRC

Dentro do CRC, presos estudam com ajuda de professores, que também já foram condenados

Ele diz que um dos planos é implantar uma faculdade dentro do presídio. Winkler observa que a maioria dos detentos quer ocupação, prova disso é a procura pelo curso do ensino médio oferecido pela Secretaria de Estado de Educação (Seduc), que funciona lá dentro.

 

Sem se identificar, por questões de estar próximo de sua saída do sistema carcerário, um professor do ensino médio que foi preso por pedofilia e condenado a oito anos de reclusão, comentou que cadeia mudou muito e continua mudando ano a ano.

 

“Antigamente aqui tudo precisava de polícia. Hoje temos liberdade aqui dentro. Podemos caminhar, ir à igreja, à biblioteca, fazer curso, trabalhar e dormir com tranquilidade aqui dentro”, detalhou o professor.

 

Falando em cultura, alfabetização e oportunidade, o professor afirma que ajudou muito preso a aprender a ler e até hoje ensina muitos a escrever e a ter a frequência na leitura.

 

Alan Cosme/HiperNoticias

carubé/CRC

Reeducando diz que já ajudou muitos a aprender a ler e escrever

“Precisamos passar um pouco do que sabemos para nossos amigos que estão aqui dentro. Como disse, a diretoria do CRC e a Justiça nos ajudam a ter um presídio que é um verdadeiro céu. Em outros, você não caminha sem escolta. Aqui você anda de boa, sem problemas e, principalmente, é respeitado por todos. Aqui existe ressocialização”, comentou.

 

Área de cursos e trabalhos

 

Já na parte externa da carceragem são oferecidos cursos. Antes de ser indicado para qualquer trabalho, os detentos passam uma espécie de triagem. Vale ressaltar que para três dias de curso ou trabalho, o detento diminui um da pena.

 

Dentro do CRC, em pontos que eram considerados corredores da mortes, valas de presos espancados e celas de tortura, hoje dão vaga para um celeiro de aprendizagem. Desde costura até a serralheria, os presos tem direito e oportunidade de aprender e sair da cadeia com uma profissão.

 

Alan Cosme/HiperNoticias

carubé/CRC

Dentro do CRC presos aprendem uma profissão

“Ao menos o detento, que ainda olha para o mercado e tem a porta fechada por ser reeducando, poderá sair daqui com a oportunidade de recomeçar sua vida com uma nova profissão. A questão é que tudo que ensinamos aqui é trabalho artesanal, com cadeiras, madeira e serralheria”, conclui Winkler.

 

O curso de padeiro, os detentos também se dedicam a inovar.  “Nós mesmo da direção fazemos confraternização com salgados feitos aqui nesta padaria. Além de salgado e pães, aqui também se faz pizza”, disse o diretor. Um dos padeiros comentou que aprendeu sozinho. “Aprendi aqui e sozinho. A necessidade de fazer algo aqui, me tornou um padeiro”, afirmou.

 

Ala Arco-Íris

 

Alan Cosme/HiperNoticias

carubé/CRC

Condenados convivem em harmonia dentro da ala Arco-Íris, criada no CRC, para evitar crimes contra gays dentro da cadeia

 

Essa ala dentro do presídio foi criado para evitar violência sexual. Quando se pensa que na sociedade, a travesti, o gay a transexual tem ainda pra onde correr, dentro do presídio não. “Antigamente se a gente caísse na ala normal, eles rapavam nossas cabeças e ainda cometiam abusos contra a gente”, disse Sandy, presa por latrocínio. Atualmente trabalha no período da tarde no Fórum de Cuiabá e pela manhã fica detida na ala destinada para a população LGBT.

 

Devido à aparência e comportamento femininos, Sandy sofria preconceito por boa parte dos presos e também precisava conviver com os assédios cometidos por outros.

 

Além disso, ela, que sempre gostou de usar cabelos compridos, maquiagem, bijuterias e roupas femininasr, teve que cortar o cabelo, deixar de lado o batom e usar roupas de homem, numa tentativa de não chamar a atenção. Para a travesti, essas mudanças representaram uma verdadeira agressão.

 

“Pior do que ouvir insultos e preconceitos era ter que conviiver como alguém que não sou. Isso era um sofrimento para mim. Hoje eu vivo tranquilamente aqui. Posso me vestir como pessoa que sou e usar minhas bijuterias”, disse Sandy.

 

Ao lado de Sandy, estava Márcia. Ela tem uma história de amor que, segundo ela, ainda vai virar filme. Ao ser presa pela primeira vez por roubo, ela se apaixonou pelo seu atual marido. Porém, em 2014 ela ganhou a liberdade e teve de cortar relações. Para voltar a cadeia, ela cometeu um furto e logo foi mandada novamente para a cadeia, onde está seu marido, condenado a mais de 80 anos.

 

“Eu amo muito ele. Não conseguia viver sem. Hoje a gente dorme separado, mas passamos o dia todo juntos. Minha história com a dele ainda vai virar filme. Ah, e sobre a ala Arco-Íris a gente tem como viver muito bem do jeito que somos, sem preconceito. Agrademos quem lembrou de nós e ao diretor, que é muito amigo da gente”, comentou.

 

Alan Cosme/HiperNoticias

ala arco iris/CRC

Sandy já cometeu crime de latrocínio e hoje cumpre meio período de pena e outro meio período trabalha no Fórum

A ala é a primeira do gênero a ser implantada em Mato Grosso, que está entre os quatro estados do país a adotar esse tipo de medida. De acordo com Winkler, a existência desse espaço de convivência não se trata de privilégio e sim de uma importante conquista para esse grupo.


“Eles cometeram crimes e devem cumprir suas penas. Mas isso precisa ser feito com dignidade. O objetivo do projeto é garantir o cumprimento digno da pena a essas pessoas”, frisou.

 

Dentro da ala, as travestis e os outros conviventes vivem em harmonia, com música, cores nas celas e ainda muito doce, onde comercializam brigadeiro e beijinho e vendem por R$ 2. “Quem quiser beijinho é só pedir, que temos pra vender e até pra dar”, brinca Sandy, ao fazer a propaganda dos doces para a reportagem do HiperNotícias.

 

Atualmente, seis pessoas estão na ala arco-íris, que já chegou a receber 20 presos. Para que o espaço fosse criado, não houve gasto pelo Poder Público, que só precisou disponibilizar duas celas para implantação do projeto. Quando chega ao Centro de Ressocialização, passa pelo processo de triagem, o reeducando deve informar seu interesse em ficar na ala Arco-Íris.

 

Humanização 

 

Alan Cosme/HiperNoticias

winkler de feitas/CRC/Carubé

Winkler, diretor do CRC, comenta que o local passa por constante mudança, sempre olhando para o quesito ressocialização

“A nossa luta é pela humanização no cárcere. Só assim podemos melhorar e dar dignidade aos reeducandos que ao sair em liberdade tenham uma profissão. Hoje tudo mudou mesmo. Temos uma cadeia limpa. O preso caminha entre os diretores. Não temos brigas, rebeliões ou mortes criminosas aqui há muito tempo. É sinal que se persistimos pela ressocialização nos presídios, teremos menos reincidência”, disse o diretor do CRC.

 

Essa luta, segundo o diretor, é para que o projeto seja repassado para outros presídios. “É necessário implantar cursos, aulas e principalmente a ressocialização dos detentos. Só assim teremos respostas boas, vinda das ruas. Hoje parece que a cadeia é problema, mas aqui no CRC essa frase não existe. Temos trabalho com horta, com galinheiro, chiqueiro, escola, igreja, padaria e muito mais. Ao menos 80% que entra aqui sai ressocializado”, concluiu.

 

Confira abaixo fotos dos projetos que são oferecidos dentro do Centro de Ressocialização de Cuiabá.